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Cinquenta anos à procura de um Caravaggio

Numa madrugada chuvosa de outubro de 1969, dois homens, supostamente contratados pela mafia sicilana, invadiram o Oratório de São Lourenço, em Palermo, foram diretamente para a Natividade com São Francisco e São Lourenço (1609), de Caravaggio, que ficava acima do altar. Eles cortaram a tela de sua moldura com uma navalha, enrolaram-na e foram embora tranquilamente.

Ao contrário do que mostram os filmes de Hollywood, os roubos de arte geralmente não são encomendados por clientes ricos, que apreciam obras caras e raras.  Tampouco são fruto de planos e ações mirabolantes.

Enquanto ladrões de arte em muitos filmes são retratados como criminosos altamente inteligentes, capazes de burlar sistemas sofisticados de segurança, a realidade é muito mais simples. Não só a segurança das igrejas, mas também a dos museus e das galerias de arte tendem a ser ruins. Assim, muitos roubos de arte nada mais são do que crimes de oportunidade e de execução bastante simples. São, assim, geralmente, encomendadados por pessoas já envolvidas em atividades criminosas.  Exemplo disso, foi um dos mais notórios roubos de arte da história, o roubo de Natividade com São Francisco e São Lourenço, de Caravaggio.

Assim como o roubo da obra de Caravaggio, outros exemplos nos deixam perplexos por sua simplicidade. Em 2002, dois ladrões usaram uma escada para subir no telhado do Museu Van Gogh, por onde entraram no prédio e roubaram duas pinturas do artista. Em 2018, na New Tretyakov Gallery em Moscou, um homem parou por alguns instantes em frente à pintura do paisagista Arkhip Kuindzh e, sob o olhar de outros visitantes do museu, pegou o quadro e saiu calmamente da galeria. Demorou alguns minutos para os visitantes perceberem que haviam presenciado um roubo. Uma testemunha ocular disse que confundiu o ladrão “com um funcionário do museu”. Quando o alarme disparou, o homem já havia desaparecido na rua.  Em 1994, dois ladrões entraram por uma das janelas da Galeria Nacional em Oslo e, em apenas cinquenta segundos saíram com O Grito, de Munch. Um alarme disparado foi ignorado por um guarda, e os criminosos agradecidos deixaram uma nota dizendo: “Obrigado pela falta de segurança”.

Após cinquenta anos de procura pela Navidade, o crime continua na lista dos dez principais crimes de arte não resolvidos do FBI.

Caravaggio e a Navidade

Em 1609, o pintor Caravaggio desembarcou na Sicília, em fuga, depois de matar um homem em Roma. Ele passou vários meses em Palermo enquanto aguardava o indulto papal para que pudesse retornar. Foi lá que o artista pintou uma de suas últimas grandes obras:  Navidade com São Francisco e São Lourenço (1609).

Caravaggio, Natividade com São Francisco e São Lourenço,1609.
Crédito de imagens: Wikimedia Commons

Realizada no final da vida do artista, a pintura de 2,68 metros de altura e quase dois metros de largura, mostra a Virgem Maria logo após o parto, descansando e olhando para o menino Jesus. No trabalho, temos também José, São Lourenço, São Francisco e um pastor. No céu, vemos um anjo com uma faixa que diz: “Glória a Deus nas Alturas”.

Caravaggio foi um grande representante do Barroco, movimento artístico marcado pela dramaticidade, realismo, dinamismo e contrastes mais fortes. Com essas características, a arte barroca buscava emocionar e estimular a piedade e a devoção das pessoas.

Em Natividade, o dramatismo da obra é alcançado por meio do uso do chiaroscuro (claro-escuro), elemento estilístico dominante nas obras de Caravaggio. Ele não criou a técnica, mas a usou de forma inovadora.

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Caravaggio, Natividade com São Francisco e São Lourenço

Em um fundo escuro, o palco principal é iluminado como em uma cena de teatro. As sombras escuras contrastam com intensos raios de luz que iluminam os detalhes mais importantes, dão ênfase à narrativa e atraem o observador para dentro da cena.

Caravaggio, Judith Decapitando Holofernes, 1607.
Palazzo Barberini, Roma.
Crédito de imagens: Wikimedia Commons

O realismo de suas obras também foi inovador. O artista não fazia representações idealizadas dos personagens bíblicos. Ele escolhia modelos mais humanos e mais populares: marginais, prostitutas, mendigos, garotos de rua…

Caravaggio, A Incredulidade de São Tomé, 1601-1602.
Sanssouci Picture Gallery, Potsdam, Alemanha.
Crédito de imagens: Wikimedia Commons

Ele também buscou montrar cruamente a realidade das cenas que retratava.  Em Natividade, por exemplo, a sagrada família parece muito humana e transmite uma idéia da vida pobre e sombria da época.

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Natividade com São Francisco e São Lourenço

Ele obviamente não agradou a todos, pois muitos consideravam isso uma blasfêmia. E, por esse motivo, muitos de seus quadros encomendados foram rejeitados. Hoje, no entanto, podemos interpretar o quadro com o olhar de admiração.  Podemos nos encantar com a cena, cuja simplicidade, na verdade, nos torna cúmplices dela. A pose entregue de Maria, seu traje simples, a face baixa, virada para o menino Jesus são bastante comoventes. O olhar para o filho me parece profundamente amoroso e, ao mesmo tempo, reflexivo e até mesmo triste, como se ela já soubesse o destino que o aguardava.

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Natividade com São Francisco e São Lourenço

O roubo

A pintura, atualmente avaliada em 20 milhões de dólares, ficou exposta no Oratório de São Lourenço, em Palermo, por mais de 360 anos, até ser roubada em 18 de outubro de 1969.

Oratório de São Lourenço, Palermo, Itália.
Crédito de Imagem: https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0/deed.en

A passagem do tempo e as infinitas versões de eventos oferecidos por informantes e pseudo-detetives acabaram por atrapalhar as investigações. O destino de Natividade permanece envolto em mistério.

Ao longo das investigações, várias hipóteses foram apresentadas, algumas bastante curiosas. Em declaração perante um juiz, em 1989, o mafioso chamado Marino Mannoia disse que o roubo teria sido encomendado, mas quando o comprador viu a obra, ele a recusou porque estava muito danificada; e, posteriormente, ordenou que ela fosse cortada e queimada. Um assassino da máfia, Gaspare Spatuzza, disse que a pintura foi mantida em um celeiro, onde acabou sendo comida por ratos e porcos, e seus restos, queimados por membros da organização. Outro mafioso, declarou que a pintura estava em seu poder, mas, depois de não a conseguir vender, foi enterrada juntamente com malas de dólares. Escavações em sua propriedade foram realizadas, mas nada foi encontrado.

Essa sequência de histórias e pistas falsas mantiveram a polícia ocupada por anos e a levaram a duas conclusões na época: a pintura foi roubada pela máfia siciliana e depois destruída.

Cinquenta anos depois

O crime de arte rouba da humanidade sua herança cultural, sua identidade e suas memórias. O crime afeta nosso passado, presente e futuro. De acordo com o FBI, menos de 10% das obras roubadas voltam a seus donos.

Apesar dos desafios, muitas vezes recuperar uma obra de arte roubada acaba se tornando uma questão de honra e patriotismo. Foi por essa motivação que, em 2018, o caso do roubo da Natividade foi reaberto pela comissão anti-máfia italiana. Tendo colhido novas declarações, a comissão concluiu que a pintura ainda existe e estaria na Suíça.

Com a aproximação do Natal, a cada ano, o roubo dessa importante obra de Caravaggio é lembrado. O marco dos cinquenta anos de seu desaparecimento, deverão reavivar a lembrança do roubo. Torçamos, então, para que a reabertura do caso e as novas investigações tragam essa belíssima obra de volta a Palermo. Quem sabe, a tempo para o Natal?

 

Carolina Horta
Carolina Horta
Carolina Horta é formada em História da Arte pela Universidade de Londres e tem cursos de especialização pela “Sotheby’s Institute of Art”. Ela é servidora pública federal e trabalha no exterior há quase nove anos. Atualmente, mora em Varsóvia, na Polônia; antes disso, morou em Londres por mais de seis anos. Morando há tantos anos na Europa, ela tem tido o privilégio de frequentar feiras, bienais, exposições e inúmeros museus, assim como ter acesso a um rico e extenso material sobre arte. Arte até Você é um projeto que nasceu de sua paixão pela arte e de sua vontade de compartilhar e fazer chegar essa paixão aos leitores, onde quer que eles estejam. Sua intenção é informar, inspirar e fazer com que mais pessoas se apaixonem pela arte.

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